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‘Devo ao SUS o fato de andar’; um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo completa 35 anos

O Sistema Único de Saúde (SUS) completa 35 anos no mês de setembro como uma das maiores redes públicas de serviço médico do mundo. São realizados cerca de 2,8 bilhões de atendimentos por ano, o que mobiliza aproximadamente 3,5 milhões de profissionais — entre médicos, enfermeiros, agentes comunitários, gestores e equipes de apoio — em todo o País. A atenção primária, porta de entrada do SUS, tem cobertura potencial estimada em torno de 70%, segundo monitoramento do governo federal.

Na História

A origem do SUS remonta ao período da ditadura militar. Naquele contexto, apenas trabalhadores com carteira assinada e seus dependentes, vinculados à Previdência, tinham direito ao atendimento médico. Boa parte da população, sobretudo a mais pobre, ficava desassistida. Foi nesse cenário que movimentos populares — como o de donas de casa em São Paulo, que se organizaram para exigir acesso universal à saúde — começaram a pressionar por mudanças estruturais.

Na década de 1980, em meio à abertura política, essas mobilizações se somaram ao chamado “movimento sanitário”, formado por médicos, professores, gestores e ativistas que defendiam a saúde como direito de todos e dever do Estado. Surgia então o Sistema Único e Descentralizado de Saúde (SUDS), um embrião do SUS. O modelo buscava descentralizar a gestão, fortalecer estados e municípios e ampliar a cobertura de serviços básicos.

As discussões avançaram na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. O artigo 196 da nova Constituição Federal estabeleceu: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Esse marco jurídico consolidou o SUS, que nasceu oficialmente em 1990 com a Lei Orgânica da Saúde.

De lá para cá, o sistema se expandiu e chegou aos impressionantes números, com destaque para o maior programa público de transplantes do mundo.

Assim, da luta de donas de casa e sanitaristas ao texto constitucional, o SUS tornou-se um pilar da cidadania brasileira.

Pilares do sucesso

O jornal conversou com o diretor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mario Dal Poz, para comentar o funcionamento do SUS. O especialista entende que a essência do sistema pode ser resumida em cinco pilares:

“A universalidade, que garante a saúde como direito de todos, sem distinções; a integralidade, que assegura atendimento completo em todos os níveis de complexidade; a equidade, tratando desigualmente os desiguais para atender quem mais precisa; a descentralização da gestão; e a participação social, com o controle da sociedade sobre o sistema”, explica.

O especialista também acredita que é uma “ousadia” o SUS operar da forma que funciona em um país das dimensões do Brasil e com uma população numerosa e heterogênea. Ele aproveitou para fazer uma comparação com sistemas de saúde do Canadá e do Reino Unido.

“O principal diferencial do SUS, e talvez sua maior ousadia, é a oferta universal, integral e gratuita no ponto de uso para uma população gigantesca e socialmente heterogênea. Isso ocorre em um país ainda em desenvolvimento e com profundas raízes de desigualdade. Enquanto muitos países desenvolvidos têm sistemas de cobertura universal – como o NHS do Reino Unido ou o Medicare do Canadá –, poucos oferecem o nível de integralidade do cuidado que o SUS se propõe. Isso inclui desde vacinação e atenção básica, passando por transplantes complexos e tratamentos de alta tecnologia, até a distribuição gratuita de medicamentos caros, tudo sem custo direto ao paciente”, destaca.

‘Devo ao SUS o fato de poder andar’

Mattheus Henrique Azevedo, de 27 anos, contou sua experiência com o SUS. Ele, que é educador físico e mora no bairro Pita, em São Gonçalo, foi diagnosticado com uma doença rara e fez todo o tratamento na saúde pública.

“A minha história aconteceu há cerca de 15 anos. Por volta dos meus 12 anos, eu comecei a sentir dores na altura no meu quadril. Essa dor irradiava por toda a minha perna e foi aumentando, com o passar dos meses.

Com isso, eu comecei a mancar. Acabei escondendo essa dor dos meus pais para não causar incômodo. Só que foi uma grande burrice não falar, né? E isso foi piorando a minha situação. E com isso eu parei no hospital, porque um certo dia eu desmaiei na rua de tanta dor.

Eu fui diagnosticado com epifisiólise crônica e já estava em estado agudo pelo fato do tempo que passou e por não ser tratado antecipadamente. Assim que a doença foi ali percebida, os médicos automaticamente me colocaram pra internação.

E a partir desse momento eu começo a peregrinar porque, pra quem não sabe, os hospitais de São Gonçalo são hospitais bem sucateados e a prefeitura de São Gonçalo é uma prefeitura um pouco bagunçada. Mas lá eu fiquei durante três meses esperando. A cirurgia, que é um pouco complexa, então a cirurgia aqui depende de vários fatores para ser feita. Mas esse tempo de espera foi piorando a minha situação da minha perna.

Eu precisava da cirurgia porque ocorria a grande chance de eu perder a perna por conta da necrose do osso, porque essa doença é uma necrose da cabeça do fêmur. E com isso a necrose foi chegando num estado no poderia causar a perda dos movimentos da minha perna, e também a necrose do osso, gerando amputação.

Graças ao SUS e pessoas ligadas ao SUS, eu descobri um hospital chamado Hospital da Criança de Vila Valqueire, na Zona Sudoeste do Rio. E, através de todo o tratamento eu fiz a minha primeira cirurgia, na qual eu consegui evitar a perda da minha perna, e assim a perda de grande parte da minha vida ali, que eu perderia pelo fato de ter perdido a minha perna.

Eu devo muito ao SUS, devo o fato de poder andar, mesmo com algumas dificuldades. Devo aos médicos que lá se encontravam, que me aceitaram, que entenderam que meu caso era uma situação complexa. Devo a todos aqueles que construíram o SUS em si. Porque se não fosse o SUS, eu estaria ferrado.

Essa cirurgia tinha um alto custo. Minha família não tinha condição nenhuma financeira de estar conseguindo investir um alto valor na cirurgia. Então assim, foi bênção de Deus eu conseguir operar pelo SUS”.

Mattheus Henrique é profissional de educação física e contou com o SUS em momentos decisivos de sua vidaArquivo Pessoal

Atualmente, Mattheus exerce a função de treinador de futebol e futsal. Após dar a volta por cima em sua vida, em 2025 ele se sagrou campeão carioca de futsal feminino adulto pelo São Gonçalo Futebol Feminino.

SUS na rotina

Já a nutricionista Carolina Abel, de 26 anos, utiliza o SUS para o tratamento de diabetes. Ela, que mora no Fonseca, em Niterói, contou que tem diabetes tipo I e faz “tratamento com endocrinologista e recebo alguns dos meus insumos pelo SUS a cada 30 dias”.

Ela, que é ativa na comunidade dos diabéticos, deu detalhes sobre como o SUS é retratado no mundo.

“Isso é muito falado entre os diabéticos tipo I no mundo. Explicamos que o SUS é o sistema brasileiro onde os medicamentos que são essenciais para vida têm assegurado o direito de recebê-los sem custo, o que contribui grandiosamente para qualidade de vida. Nós conseguimos fazer consultas, pegar medicamentos, agulhas, fazer exames periodicamente”, relata.

Carolina Abel é formada em nutrição e possui diabetes tipo I; ela utiliza o SUS mensalmente para obtenção de remédiosArquivo Pessoal

Do cuidado preventivo ao transplante de órgãos

O SUS abrange desde ações básicas — vacinação, pré-natal e atenção domiciliar — até procedimentos de alta complexidade. O Brasil manteve em 2024 um recorde histórico de transplantes: foram mais de 30 mil procedimentos, resultado da estrutura do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que coordena, normatiza e monitora doação, captação e distribuição de órgãos e tecidos no país. Esse arranjo torna o Brasil referência mundial na oferta pública de transplantes.

Vacinação: um pilar de saúde pública

O Programa Nacional de Imunizações (PNI) é outra peça-chave do SUS. Ele disponibiliza dezenas de imunobiológicos gratuitamente para todas as idades — do recém-nascido ao idoso — e, em 2024, as distribuições de doses ao país superaram a casa das centenas de milhões. As campanhas regulares e a vigilância vacinal foram decisivas para marcos como a certificação da eliminação da pólio e a recertificação do Brasil como país livre do sarampo em 2024.

Emergência, atenção especializada e programas de redução de filas

Além dos serviços rotineiros, o SUS sustenta programas que enfrentam gargalos: mutirões cirúrgicos, unidades móveis, transporte sanitário e o programa “Agora Tem Especialistas”, criado para reduzir espera por consultas, exames e cirurgias. A ideia é articular oferta presencial e itinerante e reduzir filas com ações integradas entre ministério, estados e municípios.

Saúde digital e telessaúde: ampliar acesso com tecnologia

A telessaúde vem crescendo rapidamente como complemento à consulta presencial. Entre 2023 e 2024, o número de teleatendimentos avançou significativamente — chegando a mais de 2,5 milhões em 2024, ante 1,5 milhão no ano anterior — e a estratégia é parte do plano de digitalização do SUS, com núcleos de telessaúde e telediagnóstico espalhados pelo país. A expectativa do governo é ampliar ainda mais esses serviços para reduzir deslocamentos, acelerar laudos e melhorar o seguimento de doenças crônicas.

Desafios e prioridades

Apesar dos avanços, o SUS enfrenta desafios persistentes: subfinanciamento crônico, desigualdade territorial na oferta de profissionais e infraestrutura, rotatividade na atenção primária e pressões por ampliação de leitos e tecnologia.

Indicadores recentes apontam, por exemplo, elevada rotatividade de médicos na atenção primária em regiões mais pobres, o que exige políticas de fixação de profissionais e investimentos em formação. Investir em prevenção, fortalecer a atenção primária, consolidar a telessaúde e agilizar o diagnóstico e o acesso à cirurgia são prioridades apontadas por especialistas e gestores.

Por que o SUS importa hoje

Em um país continental como o Brasil, o SUS funciona como rede de segurança sanitária: coordena respostas a epidemias, mantém campanhas nacionais de imunização, organiza transplantes em rede e amplia a oferta de atenção especializada a quem não teria acesso em esquemas privados. Os números — bilhões de atendimentos, centenas de milhões de doses distribuídas, recordes em transplantes e expansão da telessaúde — mostram que políticas públicas bem estruturadas transformam saúde coletiva em direito efetivo.

Fonte: O Dia

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